O Principezinho e o Carneiro
A Possibilidade do
Conhecimento
1.
A
Obra
O autor da obra Saint-Exupéry, procurou através das linhas que escreveu de forma poética e simbólica, desafiar os leitores a procurarem dentro de si a experiência da reflexidade, como algo que se revelará através de um processo contínuo de crítica ativa e de autoconfrontação.
Ao
leitor, caberá por meio da sua intersubjetividade, capacidade reflexiva (Beck,
Giddens & Lash, 2000), sensibilidade estética e hermenêutica indagar sobre
os conceitos implícitos ao longo da obra.
À
luz da interpretação grega do conceito de tempo, esta história deve ser analisada
tendo em consideração o conceito de chronos, o tempo cronológico ou sequencial
inerente ao movimento linear das coisas terrenas, uma vez que em 1943 a Europa
vivia sob o terror infligido pelo Nazismo. Contudo este tempo, chronos, marcou
de forma indelével os conceitos históricos subjacentes à dignidade e liberdade
humana, os quais definiram o tempo, kairos, e dessa forma o momento
particularmente relevante para a Humanidade.
O Principezinho
(Saint-Exupéry, 2015) retrata uma crítica acutilante, mas simultaneamente
reflexiva do narrador acerca da superficialidade e do materialismo humano. Critica
esta, que deriva precisamente da análise do tempo, kairos, e suas implicações
no entendimento dos valores essenciais para a vida humana.
A
história deixa-se absorver por duas personagens, o Aviador e o Principezinho.
Estes são na realidade o desdobramento da personalidade do autor do livro, o
qual procura distinguir o pensamento do adulto do pensamento da criança.
Enquanto
o adulto por imposição estereotipada da sociedade coloca-se ao nível dos seus
contemporâneos, a criança vai ao longo da história definhando, lentamente,
incompreendida, desvalorizada pelos adultos e pela solidão que os assola.
Se
todas as histórias infantis se revestem de conteúdo fantasioso, alegórico,
simbólico e de uma moral retórica, a obra de O Principezinho (Saint-Exupéry, 2015) não é exceção à regra, pelo
contrário. É um verdadeiro tratado filosófico de indagações, reflexões e
revelações que são fulcrais para o entendimento do Ser.
O Principezinho
(Saint-Exupéry, 2015) é uma viagem de procura e descoberta do que é
verdadeiramente essencial ao ser humano e ao sentido verdadeiro da vida.
2.
Filosofia
Ansiosa e Poética – os símbolos intemporais
Principezinho, Rosa,
Serpente e a Raposa
Este
vai e vem poderá significar o desafio freudiano entre o Ego e o Superego
(Freud, 2011), sobre a tristeza, a solidão, a esperança, o amor, a ambição, a
manipulação, a morte, o imaginário e a imaginação.
Na
verdade podemos entender esta história não só como um tratado de filosofia, mas
também como uma busca incessante do âmago do ser humano. Assim se compreende
que a história é povoada de elementos essenciais ao entendimento daquilo que
constitui e deve constituir a alma, bem como dos múltiplos cenários retratados da
relação entre o consciente e o inconsciente.
O
diálogo de Saint-Exupéry adulto (o Aviador) com o Saint-Exupéry criança (o
Principezinho) procura levar à consciência do adulto indagações incómodas.
O
Principezinho encarna os sonhos, as angústias e as interrogações do Aviador,
assumindo-se como o motor da consciência que o incita a buscar respostas para
os enigmas que o atormentam e perseguem.
Neste
sentido pode-se destacar o significado latente dos “embondoeiros” – ervas
daninhas (Saint-Exupéry, 2015, p.25-26), aqueles que não deixam espaço à individualidade,
os que impelem a criatividade, que condicionam as escolhas de cada um, que moldam
a personalidade e que se deixam amedrontar pela pressão social.
No
fundo a história demonstra-nos a clivagem entre a forma de pensar da criança e do
adulto. Esta última é inegavelmente talhada e dominada pelo peso dos
estereótipos sociais. Por isso o Principezinho necessita da doçura do sol, numa tentativa de
contrariar os pensamentos depressivos que o vão assaltando ao longo da história
(Saint-Exupéry, 2015, p.30).
Os
planetas, os habitantes desses planetas e o próprio Principezinho, ele
personagem em si mesmo, inexistente
sem o outro, evidencia-se ao leitor como
um profundo “tratado” de filosofia, para que porventura cada um de nós não per si, não independentemente do outro, possamos
imaginariamente habitar um desses planeta. Ou talvez não imaginariamente, mas
porque a cada viagem atracamos numa emoção que nos poderá trazer à luz para a
verdade da vivência na relação com o
outro.
O
Principezinho encarna os seus próprios sonhos, interpretações e perceções, que
se submetem à sua consciência para encontrar respostas aos enigmas e aos seus
desejos e as personagens da história existem por um motivo muito relevante: o
de interrogar e fazer refletir através da capacidade simbólica e da imaginação acerca
dos valores subjacente à sociedade e ao ser humano.
O
Principezinho dúvida e interroga-se nas diversas viagens aos mais variados
planetas, procurando um entendimento sobre os valores do Homem.
Contudo,
a dúvida trás consigo a incerteza, a insegurança e estas são a fragilidade do
Principezinho, ou melhor a fragilidade do Homem. Mas para conhecer, o Principezinho
deve duvidar, pois tal como Descartes referiu duvidar é pensar, e esta é a sua
primeira irrefutável certeza – “se duvido, penso, e se penso, existo. Eu penso,
logo existo”. (Descartes, p. 100, 102).
Ao
longo dessas inúmeras viagens, o Principezinho faz um périplo por diversos
planetas, os quais se revestem de diferentes personagem que o impelem a
descobrir diversos valores, pensamentos e em última análise para a construção
de diversos tipos de sociedade.
Essas
personagens caraterizam simbolicamente os aspetos mais fúteis e contraditórios
da sociedade desde logo: a autoridade, o ordenar e fazer-se obedecer; a vaidade
e o egocentrismo daqueles que vivem do regozijo; a embriaguez como fuga (fuite
en avant) dos problemas; a avareza de quem só vive para amealhar dinheiro e dessa
forma se encontra completamente absorto de tudo o resto; os que se apropriam do
mérito dos outros; e os que por falta de autonomia obedecem às mais
estapafúrdias ordens.
Na
viagem ao Planeta Terra, a história destaca as personagens da Rosa, da Serpente
e da Raposa, as quais nos remetem para a verdade, ou as verdades da Terra.
O
Principezinho simboliza a esperança, o amor e a inocência da infância que
reside no inconsciente dos Homens e a capacidade de trilhar o próprio caminho,
sem esquecer e simultaneamente reconhecendo que “o essencial é invisível aos
olhos” (Saint-Exupéry, 2015, p.86). Através desta personagem pode-se
simbolicamente entender que a inocência não é mais do que o conhecimento dos valores,
da verdade e da revelação mais além. Assim aquilo que é invisível aos olhos e
que portanto não se evidência, parece adquirir uma elevada importância para o
pensamento.
A
Rosa surge na história como o primeiro amor do Principezinho. Um amor total, absoluto
e ingénuo. Ela simboliza a perfeição, o amor, a alma, a pureza, a beleza e o
desabrochar do botão simboliza o segredo e o mistério da vida. Gandhi referiu
num dos seus inúmeros pensamentos que a vida de cada qual fala como uma rosa e
que esta atrai até aqueles que não a vêm.
A
Rosa é o sentimento, o amor, que liberta e em torna da qual toda a história se
encena para o Principezinho, a sua viagem, a sua tristeza, a busca noutros
planetas e o seu regresso. A Rosa é a base do pensamento do Principezinho, pela
sua individualidade, fragilidade e unicidade – “essa germinara de um dia para o
outro, de uma semente vinda sabe-se lá de onde” (Saint-Exupéry, 2015, p.36).
Talvez veio da imaginação do Principezinho, para ser amado e para que assim se
conheça a si mesmo.A relação entre a Rosa e o Principezinho leva-nos a entender que é nos atos que encontramos a essência do outro e não na superficialidade das palavras – “Devia tê-la julgado pelos atos, não pelas palavras” (Saint-Exupéry, 2015, p.39).
Mas ainda assim o verdadeiro significado implícito desta relação, reside na inevitável importância de o Principezinho se conhecer a si próprio primeiro, para que depois possa estar disponível para conhecer o outro – “se fores capaz de te julgar, é sinal de que és um verdadeiro sábio” (Saint-Exupéry, 2015, p.25-26p.48).
A Raposa sintetiza nesta história a matriz dos valores humanos. Esta personagem ensina ao Principezinho e a nós, que “o essencial é invisível aos olhos” (Saint-Exupéry, 2015, p.86) e que a morte não é motivo para tristeza, porque o ser humano é uma metamorfose do essencial.
3.
O
Desfecho Indeclinável – O Carneiro (res cogitans)
É
a função simbólica e imaginária que faz do Principezinho um ser impar,
inigualável e subjetivo. E é na sua subjetividade sobre o que é viver de
verdade, sobre o que é vivenciar o mundo enquanto criança e adulto, que o
segredo da vida se revela.
Indagar
sobre o segredo da vida é complexo e o Principezinho demonstra-nos que “o
essencial é invisível aos olhos” (Saint-Exupéry, 2015, p.86) de tal forma que
aquilo que imaginamos faz parte integrante de nós próprios.
Ao
imaginar um carneiro dentro da caixa (Saint-Exupéry, 2015, p.15), um carneiro
feito a seu gosto, o Principezinho retrata-nos o pensamento filosófico de
Descartes. Se o Principezinho existe, aquilo que ele imagina também existe, no
sentido em que “eu sou, eu existo” (Descartes, 1976, p.100) e que isto é
necessariamente verdade “todas as vezes que o enuncio ou que o concebo em meu
pensamento” (Descartes, 1976, p.100). Aos olhos desprovidos de imaginação seria
somente uma caixa, mas para o Principezinho tratava-se de um carneiro fruto do
pensamento imaginário e portanto conhecimento e realidade.
A obra de O Principezinho não é mais do que uma confluência de símbolos inerentes ao pensamento humano, os quais demonstram a importância inegável da imaginação. Embora Descartes assuma que a estrutura filosófica parte da sua existência, logo da razão, o próprio considerou que é algo que pensa, que duvida, concebe, afirma, nega, quer e sente (Descartes, 1976, p.103). Com isso o filósofo abre a sua teoria para a questão dos sentidos, considerando que mesmo que as ideias que se lhe apresentem sejam ilusões, elas existem pois não pode deixar de pensá-las. Assim os sentidos e imagens formam o seu pensamento, tal como para o Principezinho a imaginação surge como forma de indagar e conhecer a realidade.
A
imaginação, aquela que o Principezinho coloca ao serviço das indagações para
chegar ao pensamento filosófico, embora não tenha existência no real não pode
deixar de ser entendida como fazendo parte do Eu, da alma e do pensamento.
Para
Descartes, o Homem é um ente pensante, que além de pensar, duvida, sente e
imagina (Descartes, 1976, p.103). Para o Principezinho a imaginação é o caminho
para se conhecer a si mesmo e ao outro e certamente consideraria que embora “as
coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa, no
entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento (Descartes,
1976, p.103).
4.
Resenha
Pessoal – Dos princípios do Conhecimento Humano
Mas que princípios? Como deveremos “despir-nos” de (pre) conceitos, da superficialidade humana e deixar-nos contagiar por aquilo que é essencial, ou que é a essência de si mesmo e que na relação com o outro se apresenta como o âmago da Coisa Pensante, Res Cogitans (Descartes, 1976)?
Uma incursão pelos Princípios da Filosofia à luz de Descartes (Descartes, 1989) poderá servir como ponto de referência para a ligação que procurei estabelecer entre a obra de O Principezinho e a Constatação do Cogito de Descartes, tendo por base que uma coisa que pensa existe ao menos enquanto pensa.
Para
Descartes a dúvida foi o método pelo qual o próprio pensou chegar à certeza
indubitável sobre si e sobre a existência. Assim a dúvida aparece na teoria
Cartesiana como um meio positivo, para encontrar a lógica da existência.
De
entre os mais diversos Princípios por si analisados, Descartes considerou que o
fundamento do pensamento filosófico se encontra na dúvida e que “não podemos duvidar sem existir, e que isso
é o primeiro conhecimento certo que se pode adquirir” (Descartes, 1989,
p.55).A ideia de que não há nada no mundo de certo e de que o pensamento se coloca ao serviço do conhecimento afigura-se como um dos princípios fundamentais para Descartes e para muitos filósofos que seguiram o seu pensamento.
A dúvida do Principezinho relativamente à Rosa, que ele não foi capaz de entender nas suas contradições, possibilitou ao próprio Principezinho a sua existência.
A
obra abordada neste trabalho refere-se a uma história composta por símbolos, os
quais pretendem despertar no leitor a reflexão sobre os seus significados.
Os
símbolos criados pelo Principezinho ao longo da história, para que ele próprio
possa indagar e descobrir a verdade das coisas, leva-nos a todos a viajar por
planetas e personagens inexistes, mas carregadas de conteúdo simbólico. Não é ao acaso que a personagem principal é uma criança. Na verdade a criança é o ser por excelência que utiliza como ferramenta para o pensamento e conhecimento o simbólico, a perceção e a imaginação. O pensamento da criança serve-se destas ferramentas para representar o real, para aceder à sua essência e à essência do outro - “imaginar, mas também sentir, são aqui a mesma coisa que pensar” (Descartes, 1989, p. 58).
Os
símbolos da história tais como a Rosa, a Raposa e a Serpente, não são mais do
que personagens imaginárias que embora não pertencentes ao mundo real,
possibilitam aceder ao conhecimento, porque o Principezinho pensa nelas e
procura por meio delas chegar à essência do conhecimento de si e do outro. A
imaginação supera o conhecimento pois não possui limites, desafia e impulsiona
o ser a novas descobertas, a novas representações e a um novo conhecimento.
Ainda
que Descartes na sua obra (Descartes, 1976) não assinale de forma vigorosa a
importância do inconsciente, ao falar de imaginação e de perceção, fala da
importância destes dois conceitos para o pensamento – “e tenho também
certamente o poder de imaginar (…) pois, ainda que as coisas que imagino não
sejam verdadeiras (…) faz parte do meu pensamento” (Descartes, 1976, p.103).
Esta
é uma história repleta de símbolos, de imaginação ao serviço do conhecimento da
essência de si mesmo e do conhecimento da essência do outro, como forma de
encontrar a verdade da relação humana. Indubitavelmente todos fazemos parte
desta história e por isso mesmo ela é intemporal e cativa todos aqueles que a
leem.
Seremos
muitos os principezinhos, inocentes, corajosos e curiosos, porque almejamos ver
para além. Alguns de nós seremos a Rosa, sedutora e generosa, porque quem ama verdadeiramente liberta.
Por vezes cruzamo-nos com a Serpente, sábia e poderosa que nos leva a conhecer a verdade.
E a Raposa? Quantos não gostariam de ter uma raposa, amiga e responsável sentada ao lado sob a paisagem de um lindo horizonte, fazendo-nos refletir e pensar sobre os valores essenciais da vida. Só ela nos pode enunciar que “só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos” (Saint-Exupéry, 2015, p.86) e que a imaginação molda o nosso pensamento e as representações que fazemos do real.
Descartes, R. (1976). Meditações sobre a filosofia primeira (G. Fraga, Trad.). Coimbra: Almedina (Obra original publicada em 1904).
Descartes, R. (1989). Princípios da Filosofia, 4ª Ed. Lisboa, Guimarães Editores, Lda.
Freud, S. (2011). O Eu e o Id, Autobiografia e outros textos [PDF]. Retrieved from https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2013/10/freud-obras-completas-vol-16-1923-1925.pdf
Saint-Exupéry, A. (2015). O Principezinho. Porto: Porto Editora.
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